O Poeta do Deserto

Em meio ao arder árido agradeço aos espertos pelo incentivar singelo,sou O Poeta do Deserto!

Textos


O Tirador de Hóstia
 
    A religiosidade e o misticismo dos sertanejos são sobejamente conhecidos. Os habitantes de Algodões não fogem a essa regra. Há, em janeiro, uma semana inteira de festas e orações em homenagem ao padroeiro São Sebastião: procissões saem da igreja e serpenteiam pelas ruas com cantos e orações, com andor e crianças vestidas de anjos. Novenas são rezadas na igreja com toda devoção e missionários às vezes aparecem por lá para pregarem, para estimularem a mortificação e a oração. Vez por outra, vê-se missa na igreja, quando todos os moradores colocam suas melhores roupas para participar do ato litúrgico.
     Mesmo sob a mais inclemente seca, quando quase não há mais água para os animais beberem, quando se saciam em bebedouros profundos cavados no rio Piutá, com sua água salobra, quando a água potável é carregada em jumentos de reservatórios distantes, já chegando misturada com a lama dos fundos das lagoas, e o chão cinzento, o calor intenso, o céu azul e límpido, sem esperança de chuva tão cedo, mesmo assim, seus habitantes não desistem e fazem suas preces para que a chuva volte ao sertão. É uma fé inquebrantável.
    Algumas pessoas são conhecidas por terem poderes especiais. Quando rezam, a pessoa que recebe a oração sara de enfermidades, fica mais forte para enfrentar doenças e supera melhor obstáculos na vida. Essas pessoas são as rezadeiras. Elas invocam os santos nas horas das dores dos doentes: dor de dente (Santa Apolônia), olhos (Santa Luzia), endividados (Santa Edvirges), parto (Nossa Senhora do Bom Parto), engasgo (São Brás), picadas de cobras (São Bento), animais (São Francisco), azia (Santa Sofia) seguem-se dezenas de outros males e o santo que a quem se deve recorrer. Quem está sendo curado não pode cruzar os pés ou as mãos durante o ato e, ao final, não deve perguntar qual é o preço da reza. Após alguns dias, deve-se visitar a rezadeira e dar-lhe um agrado, não como pagamento, mas como uma forma de gratidão, podendo dar uma roupa ou um sapato.
        Há também aqueles que têm o poder de resistir aos ataques das cobras venenosas, tão comuns no sertão.
    Dentre essas pessoas especiais, umas poucas se sobressaem. Elas surgem sempre durante uma missa, quando os sertanejos fazem suas orações, mais precisamente no momento da transubstanciação, quando as substâncias do pão e do vinho mudam para a substância do corpo e do sangue de Jesus Cristo, no ato da consagração, que é seguido pela comunhão. Nesse instante, um sertanejo, há muito preparado para esse momento, entra na fila da comunhão. Após receber a hóstia consagrada, volta para o seu lugar em um banco da igreja, de mãos postas e ar embevecido. Ajoelha-se no banco. Disfarçadamente pega um pequeno canivete ou uma pequena lâmina e, sem chamar a atenção de ninguém, dá um pequeno corte no braço, na mão ou em um dedo, apenas o suficiente para sair um filete de sangue. Num ato contínuo, retira a hóstia da boca e a coloca em contato com o seu próprio sangue. A hóstia começa a se dissolver e o Corpo de Cristo se dilui no sangue de um humano. União extrema, sacrilégio gravíssimo.
     Disfarçadamente, o resto de sangue misturado com a hóstia consagrada é limpo em um lenço, guardado rapidamente no bolso da calça. Temerosa, aquela pessoa olha para os lados para se certificar de que ninguém havia notado seus movimentos, naquele ato que há tanto tempo planejara, mas que só agora tivera a coragem de fazer.
     Com a respiração ofegante, o coração disparado, sente-se um pouco tonto, acha que já é o efeito do Corpo de Cristo no seu organismo. Aguarda ansiosamente o final da missa. Bênção final. Sai lentamente da igreja, olha para as pessoas em torno de si, colegas, compadres, coloca a mão no bolso para se certificar de que o lenço está ali. Assim que chegar a casa, tem que lavá-lo sem que ninguém perceba, pois, a partir de hoje, será outro homem. Nada o atingirá, bala não perfurará seu corpo, peixeira não cortará suas entranhas, cobra não lhe picará e, se o fizer, nada acontecerá consigo. Nenhuma enfermidade o abaterá precocemente. Está, a partir de hoje, com o “corpo fechado”.
     Seu corpo agora tem a hóstia consagrada. Ninguém sabe disso, só ele e o Senhor, sem confidentes ou testemunhas. Terá uma vida igual à de tantos outros sertanejos, só que agora será diferente da maioria: o seu corpo fechado lhe proporcionará uma vida longa e saudável, com a certeza de que verá filhos e netos crescerem.
     Esse ritual secreto foi feito por várias pessoas que passaram a fazer parte do contingente de seres humanos com hóstia no corpo. Isso era sagrado, sendo comentado muito rapidamente e de forma muito velada. Não se sabia quem tinha hóstia no corpo, mas às vezes se desconfiava de alguma pessoa que era picada por cobra e nada acontecia com ela, ou de alguém que era atacado ou emboscado, mas saía ileso. Pensava-se:

  - Acho que compadre fulano tem hóstia no corpo!

     No entanto, sempre pairava a dúvida.

     No sertão se usa muito a medicina natural, retirando-se, de espécies nativas, lambedores, chás, cicatrizantes, expectorantes e os mais diversos medicamentos, quer seja da casca, da raiz ou dos frutos dos vegetais. Quando o caso se complica, desloca-se o enfermo para uma cidade próxima para o atendimento médico tradicional. Mesmo nessas cidades, no início do século XX, em torno de 1900, não havia condições de um atendimento muito diferenciado. A medicina ainda estava se desenvolvendo.      No sertão existiam, e ainda existem, doentes em estados terminais que agonizam em suas casas, no seu próprio leito, rodeados do carinho dos seus familiares. Diferente dos doentes terminais das cidades que hoje agonizam junto a outros em UTIs lotadas e superaparelhadas que, na maioria das vezes, têm a função de protelar a morte do enfermo. Quem já teve necessidade de entrar em uma UTI sabe do que estou falando. Parece uma praça de guerra, com velhos e velhas mutilados, tubos de oxigênio, soros, monitoração da pressão, batimentos cardíacos, oxigenação e toda parafernália. Antigamente, mesmo nas cidades, isso não acontecia, porque os doentes, em sua maioria, morriam em casa, com a assistência médica que fazia visitas domiciliares diárias.
     No sertão, naqueles idos, quando a pessoa ficava doente, era tratada com a medicina natural. Se a recuperação não vinha, eram chamadas as rezadeiras ou benzedeiras, que, intercedendo com o Altíssimo, tentavam livrar os enfermos dos seus males. Algumas enfermidades, porém, se complicavam, então o doente, dia a dia, definhava. Pouco se alimentava, já não levantava da cama, mal conhecia os próprios familiares. Rezas eram feitas diariamente, várias vezes se corria com uma vela acesa pensando que ele estava nos seus últimos minutos, mas, mi-la-gro-sa-men-te, o enfermo se recuperava um pouco e não morria. O sofrimento dele e da família era grande. Nesses casos, surgia uma inquietação que depois se transformava em dúvida, logo seguida de uma certeza:

      - Acho que pai tem hóstia no corpo!

     Foram relatados vários casos de pessoas que passaram por esse mesmo sofrimento e só partiram para o descanso final quando foram feitos os procedimentos para retirar do seu corpo os efeitos milagrosos do Corpo de Cristo, introduzido em seu próprio sangue há muito tempo.
     Henrique Antunes, avô de Zé Henrique, era um homem alto, moreno, cabelos pretos e lisos, muito calmo. Prestava muita atenção às pessoas e ouvia-as pacientemente. Nunca teve inimizades. Agricultor, casado, com filhos, morava e trabalhava no Caroá, uma localidade perto de Algodões. É o pai do velho Mané Henrique, o contador de “causos” que contava “lordácias”, como ele chamava. Henrique Antunes era como todos os sertanejos, muito católico. Sempre que havia missa na igreja de Algodões, vinha do Caroá para assistir à missa e fazia questão de comungar. Numa dessas comunhões, embevecido com a presença do Corpo de Cristo em si, teve o que se pode chamar de uma revelação.
     Sabia das histórias dos “corpos com hóstia”, dos corpos fechados e do sofrimento de algumas pessoas que, no leito de morte, agonizavam por semanas, às vezes por meses. Naquela manhã de domingo, em pleno início do século XX, um pensamento lhe surgiu, primeiro de forma vaga, indefinido, a hóstia se dissolvendo em sua boca e imagens de moribundos vinham à sua mente, com choro de familiares e tristeza. O pensamento dele se organizou mais, ficou mais claro e, agora, já era bem nítido.
     Uma revelação lhe foi feita no ato da comunhão. Agora já é uma missão, e divina. Ele, simples mortal por desejo de Cristo, deverá aliviar todo aquele sofrimento. Será o intermediário entre o divino e o terreno. A partir daquele instante, o sertão do Moxotó conviveria com outra faceta de Henrique Antunes. Ele se tornaria famoso e útil, pois se tornara, por desejo divino, o “Tirador de Hóstia”.
     Dias após esta revelação, estava ele em seu roçado limpando o feijão e o milho que já estava embonecando, quando chega o seu filho Mané Henrique, ainda criança, e lhe diz que um morador do Piutá conhecido dele estava muito doente e não tinha mais jeito. Sua esposa e seus filhos achavam que ele tinha hóstia no corpo. Ao ouvir o relato do filho, Henrique Antunes sente o chamamento de Cristo e era chegada a hora de dar início à sua missão. Vai para sua casa que ficava perto da roça, lava os pés e as mãos e diz à esposa que vai visitar o velho amigo moribundo. Ao chegar à casa do doente, cumprimenta os presentes e procura ouvir a opinião das pessoas sobre a doença que acometia o enfermo. Quando se levanta a hipótese de ele ter hóstia no corpo, isso dito bem baixinho e de forma velada, Henrique Antunes diz que ele tem condições de saber se ele tinha hóstia no corpo ou não. Diante da perplexidade dos circunstantes, afirma que foi uma revelação que teve, quando estava comungando. Como ele era muito sério, honesto, trabalhador e gozava do respeito das pessoas, deram-lhe crédito. Perguntaram-lhe, então, o que deveria ser feito. Ele disse que saíssem todos do quarto e deixassem-no sozinho com o enfermo. Obedeceram ao seu pedido. Ele entrou no quarto e fechou a porta atrás de si. Poucos minutos depois, a porta se abriu e ele saiu com a fisionomia tranquila de sempre. Rodeado pelos familiares e amigos que querem saber o veredicto, ele diz:

     - Ele não morre, porque tem hóstia no corpo.

     Indagam-lhe, então, o que deve ser feito. Ele diz que foi instruído por Cristo para tirar hóstias. Imediatamente a família o autoriza a fazer os procedimentos necessários para tirar a hóstia do corpo daquele a quem tanto amam.
Henrique Antunes pede uma garrafa de cachaça, enche um copo com aguardente e toma de uma só vez. Pede para que todos se retirem do quarto, tem o cuidado de fechar uma janela, fecha a porta do quarto cuidadosamente e fica só com o agonizante. Lá fora, o terço é rezado; alguns, ajoelhados, choram, torcem para que Henrique Antunes tenha êxito na sua missão. Após alguns minutos, a porta do quarto se abre e o “Tirador de Hóstia” sai com a fisionomia tranquila de sempre, só algumas gotas de suor escorrem do seu rosto. Indagado pelo enfermo, diz:

     - Tirei sua hóstia. Agora já está no Reino dos Céus!

     Um misto de tristeza e alívio invade aquela sala. Finalmente o enfermo descansa e, aos poucos, a vida voltará ao seu curso normal. O “Tirador de Hóstia” é elogiado e, a partir daquele instante, a história se espalhou e o vale do Moxotó passou a conviver com aquela figura tão importante e intermediária entre os homens e Deus.
     Acabaram aqueles meses de angústia e sofrimento para alguns doentes e seus familiares. O “Tirador de Hóstia” resolvia o problema. Henrique Antunes continuava sua vida normal como agricultor no Caroá, atividade que era brevemente interrompida vez por outra, quando era chamado a desempenhar sua missão. Aliás, resolvia rapidamente em poucos minutos, perdia mais tempo se deslocando a pé ou em um jumento para os locais que necessitavam de seus serviços. Serviços feitos gratuitamente, por amor ao próximo.
    Um dia, Mané Futuca adoeceu. Todos os tipos de medicamentos lhe foram administrados, benzedeiras foram chamadas, mas o homem não melhorava e, cada dia, ficava mais fraco. Surge a questão fatídica:

    - Será que Mané Futuca tem hóstia no corpo?

     Henrique Antunes foi chamado para dar sua opinião. Agora, já estava muito experiente, com inúmeras pessoas atendidas e com êxito total. Não havia falhado uma única vez.
     Entra no quarto de Mané Futuca, como sempre fazia, e, ao sair, diz que ele tem hóstia no corpo. É autorizado pelos familiares a fazer os procedimentos necessários para tirar a hóstia do corpo do velho amigo. Convida todos a se retirarem do quarto e começa a fechar o aposento, iniciando pela janela. Nessa hora, Zé Dodô, que era criança, filho do Sr. Dodô, entra agilmente no quarto e se esconde atrás de um gibão de couro que estava pendurado na parede. As perneiras escondem o seu corpo franzino. Ninguém notou quando ele se escondeu, nem Henrique Antunes, que estava de costas fechando a janela. Ao terminar de fechar a janela, o “Tirador de Hóstia” vai à sala e toma um copo cheio de aguardente. Volta para o quarto e fecha a porta. Zé Dodô afasta um pouco as perneiras e observa, atemorizado, o que vai se desenrolar à sua frente. Pela primeira vez, haverá uma testemunha para aquele ato.
      Rezando um Pai Nosso, Henrique Antunes sobe na cama do enfermo, coloca o seu joelho direito em cima do peito do doente e faz força; concomitantemente, coloca suas duas mãos em volta do pescoço do velho enfermo e aperta com muita força. Abalos musculares ocorrem no corpo de Mané Futuca, a face fica congestionada e escurecida; aos poucos, os abalos musculares cessam. Henrique Antunes afrouxa as mãos em torno do pescoço do enfermo e olha satisfeito para o corpo que jaz em sua frente. Missão cumprida. Levanta-se e enxuga o suor da testa com sua mão direita. Abre a porta e diz que sua missão acabou. Novamente, repete-se aquele estado de dor e satisfação pela partida do doente. O “Tirador de Hóstia” é cumprimentado, eterna gratidão de toda família.
     Zé Dodô, escondido atrás do gibão, que a tudo havia assistido com as pernas trêmulas de medo, espera o momento adequado para sair do seu esconderijo. Quando julga a ocasião oportuna, sai de mansinho e dirige-se para sua casa. Está louco para contar à mãe o que tinha presenciado. Quando a vê, corre para ela e diz:

 - Mãe, aquele velho não sabe tirar hóstia não. Ele matou o pobre do velho Mané Futuca.

   E conta à mãe o que havia presenciado. Ao terminar o seu relato, sua mãe lhe diz:

 - Menino, o velho Henrique sabe o que tá fazendo...


 Um Conto astutamente criado por Marcos Padilha de Freitas.
Marcos Padilha
Enviado por O Poeta do Deserto em 30/09/2013
Alterado em 30/09/2013
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